O ideal em um artista, segundo o poeta Charles Baudelaire, seria que ele captasse suas inspirações e observações do dia-a- dia com a franqueza e frio na barriga de uma criança, e também com a paixão e frescor de um convalescente. Seria a tênue ligação entre dois mundos aparentemente distantes: um que goza de uma promessa de vida ainda longa e irrevelada, e outro que conseguiu recuperar a sua vida ante uma possível perda. O ponto que me refiro é o que sugeri no último post: a sensibilidade como bandeira.
Não só o artista, como todo homem deveria experimentar desse exercício do olhar de vitrine, ainda citando Baudalaire. Esse olhar que, mesmo fisicamente distante, se aproxima do mundo real em sua transparência. Desperdiçamos tantos detalhes no rush do relógio que pouco aproveitamos das revelações que nos são dispostas todos os dias. À tempo, descobri um prazer que vai além dos toques e aquisições: a simplicidade e cumplicidade de um momento vulgar, e sua capacidade de me arrancar o sorriso mais reconfortante e inspirador.
Falo das pequenas coisas sim, mas não no sentido de pregar o altruísmo ou desapego, apesar de considerar tais ações honráreis. Falo dos detalhes na sua natureza intrínseca e descompromissada, que não precisa de marketing, belas curvas, responsabilidade social ou projetos ambientais, e que se tivessem à venda, pagaria pelo preço mais caro.
Nesse exato momento, falo da explosão de alegria de deitar no chão gelado de uma noite quente ao lado do meu gato persa que se espreguiça, e curtir por alguns minutos o seu carinho de retribuição. Do seu olhar dentro dos meus olhos, do miado quase falado, do roçar do seu rosto no meu. Não acredito que perco isso tantas vezes e tantos dias para ver tv. Sorria e ria sozinha tentando imaginar o que ele pensava da sua dona naquele momento, na primeira vez q me via deitar no chão para ver o mundo da sua altura. Os gatos podem ter mais sentimentos que a gente, acredito piamente e não comprem briga comigo quanto à isso.
Falo também do bom dia do meu porteiro. Não de todos os porteiros, nem de todos os bom-dias, mas o que ele me deu domingo passado, especificamente. Estava sentada no meio-fio do lado de dentro do prédio, esperando pela carona de uma amiga que se demorava. Quando comecei a me afundar naquela solidão esquisita e papel de esquecida sob os olhares de quem entrava e saía da portaria, ele passou, parou, me segurou pela mão, e como se dispusesse de todo o tempo do mundo para ouvir o que se passava comigo, cumprimentou com um BOM DIA quase biscopal. O repeti em sua frase, e ele surge com um complemento: ” Está tudo bem?”. Permaneceu parado e atento para ouvir a resposta, não foi somente uma expressão de um discurso fático. Quase desmanchei-me em lágrimas, mas respondi: ” Está tudo ótimo”. E permaneci sorrindo por uns dois minutos por causa de um bom dia.
E também da vista do Aterro do Flamengo; do Cristo encoberto pelas nuvens do Rio nublado e encabulado; da chuva fina que conquistou os cariocas nesta quinta-feira escaldante e que refrescou as plantas quase secas do pátio do meu prédio e minha mão que estendi pra fora da janela; da conversa de 10 minutos que tive na praia, girando em torno de nada grandioso, a não ser da vontade de uma pessoa de estar ao meu lado no único tempo disponível que tinha; das meninas de 12 ou 13 anos, também na praia e atrás da minha cadeira, repetindo todo o roteiro da minha adolescência com um ânimo e astúcia que me desconcentrou a leitura de um livro; do sorriso quase escondido da minha mãe sair comigo depois de meses sem grandes trocas e da tranquilidade que suas mãos dadas às minhas me fez novamente sentir;
De tudo que não vem com manual ou anunciado, dos brindes que a vida nos dá cada vez que a visitamos sem marcar hora.
Acho que isto, além de fazer um grande artista, faz um grande amante. Amante do amor, da profissão, da família, do dia, da noite. E prometo nunca me desvencilhar deste olhar, para que ao menos mostre a quem não vê estas pequenas coisas o que está à frente dos seus óculos e dias escuros. É a vida logo alí, olha só. Vai gostar.